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Resistir, ou, porque a viagem também se faz de momentos em que temos de voltar atrás

Há já mais de um mês que voltei. Cheguei cansado, frustrado, não queria estar aqui, afinal Fiji era ponto de partida, não porto de chegada, afinal tinhamos saido daqui na ilusão de atravessar o Pacífico, primeiro até ao Hawaii, depois até ao lado de lá, até ao continente Americano, que era afinal o nosso destino.

Mas não foi, Neptuno não quis, Eolo não deixou, o vento apagou-se ao largo do paraíso perdido de Tokelau, verde oásis num deserto de água que se fazia mais e mais quente, sem vento, como um verdadeiro deserto que nos enchia os olhos de miragens perdidas e nos esvaziava as velas, um dia, dois dias, dias infinitos a que se seguiu a tempestade que nos empurrou definitivamente para longe da nossa rota e nos fez voltar de vez para trás.

Foram longos os dias, entre a tempestade cruel que se abatia lá fora, e a tormenta infindável que me ribombava por dentro nas horas perdidas no mar sem fim. Foram longos os dias, mesmo depois da bonança que pouco acalmou o desespero e a frustração de ter de voltar para trás. Foram longas a horas, de olhar perdido no horizonte do mar a pensar nos porquês do destino, como nos últimos suspiros de uma relação moribunda que se tenta inutilmente salvar do fim, com horas de pensamentos e ilusões que em nada mudarão o inevitável.

Foram longas as horas, de olhos perdidos no horizonte, com a beleza do oceano eventualmente a vencer a incerteza e a encher de novo os olhos de brilho, na certeza desse mar e desse amor infinito que não quebra, nem ao vislumbrar a sua pior face, porque amor verdadeiro, porque nem a pior das tempestades e a mais frustrante viagem me farão um dia deixar de amar, sem saber porquê, o imenso e infinito oceano.

Cheguei cansado, frustrado, não queria estar aqui, e o regresso foi duro. O passar dos dias e a cada vez mais provável impossibilidade de seguir caminho, a iminente certeza de ter de voar, as horas e os dias passados em duro trabalho de procura do impossível, a frustração crescente de não saber o quê nem como fazer, tudo pesou num cansaço imenso, infinito, sem fim.

A tentação de desistir nunca foi tão grande, verdadeira, real, e o final de um sonho de quase três anos, onde perdi tanto, onde arrisquei tanto, incluindo em momentos até a própria vida, esse final que nunca quis pensar possível fez-se cada dia mais verdadeiro, pesadelo que me veio assombrar os dias cinzentos que se abatiam lá fora e dentro de mim. O fim esteve perto, mas felizmente não chegou.

Resisti, a custo, um dia depois do outro. Um sorriso, uma ajuda sem preço, uma possibilidade que se abriu, uma força que se foi buscar onde não havia, a certeza de querer fazer valer todas as horas passadas longe de família e amigos, da sobrinha que não conheço, dos que conheço e que estranho, a certeza de querer fazer valer todos os momentos perdidos em nome de um sonho que não quis ver acabado. Resisti, a custo, pensando em tudo o que arrisquei, no caminho que corri, no sonho que me move, em tudo o que um dia me espera quando voltar inteiro, cheio de histórias e de certezas.

Resisti, lutei, parei de lutar, deixei por fim à sorte, a Deus, a todos os deuses que encontrei no caminho, resistindo até ao fim, ou deixando talvez de resistir, deixando a vida fluir por dentro de mim, à minha volta, relembrando-me da verdadeira essência da viagem e da vida que levo, que flui por mim como eu pela estrada e pelos mares deste mundo.

Resisti, cheguei cansado mas resisti, o sonho vive, amanhã é novamente dia de partir, por mar, e sempre sem pressa de chegar.

Suva, Fiji, 20 de Outubro de 2015

Fiji: meio mundo, ou a inevitabilidade de começar a regressar

Passaram quase dois meses desde que cheguei a Fiji, quarto destino da minha viagem pela Oceânia, quarta paragem da minha travessia do Pacífico, essa que comecei em Janeiro deste ano e que se foi fazendo larga, preguiçosa, ao ritmo daqui, “Pacific time”, sem qualquer espécie de pressa, condicionada pela impossibilidade desse barco que tarde ou cedo chegou para me levar ao destino seguinte, um passo de cada vez.

Passaram dois meses desde que parti de Vanuatu, trazido pelo vento e pela sorte de me cruzar com o capitão Jacob, que me abriu as portas do seu Mewa para me deixar continuar a sonhar com a volta ao mundo sem pressas nem aviões, viagem continuada nessa semana de travessia ao sabor das ondas, voando baixinho, tocando as ondas com os dedos enquanto milha a milha vencemos contra o vento a distância de mais uma etapa do caminho.

Cheguei cansado aqui, com o corpo doido depois de seis dias sem descanso no solavanco constante das ondas que não dão trégua. Cheguei cansado aqui, esgotado, vitima dos trópicos num dedo inflamado que me fez o caminho mais difícil e a chegada amarga. Cheguei cansado, com o brilho nos olhos de quem vence nova fronteira, mas que senti menos acolhedora pelo cansaço da doença que se fez infinita, num fim à vista que nunca mais chegou, que me fez cansado de estar aqui ainda que sem quase ter chegado.

Mas os dias passaram, o corpo reagiu, o descanso fez o seu papel, a vida foi aos poucos voltando a ter sabor, a ter-me a mim, a ser minha em cada dia que passa. O tempo passou nessa feia Lautoka, doce terra de açúcar que me amargou os dias de espera, mas onde abri de novo a porta do caminho que tenho a seguir. O tempo passou, e de novo feito ao mar rodeei meia ilha para num acaso descobrir na pequena Qoma a acolhedora simpatia do Pacífico e das tradições de Fiji. O tempo passou e trouxe-me à eternamente chuvosa Suva, capital por onde os dias passaram devagarinho na espera da hora de partir. O tempo passou, e na impaciência da espera fui até à verdejante Taveuni, onde toquei num mesmo dia o ontem e o amanhã, vítima da magia tonta que sentem os viajantes ao cruzar linhas, passado o meridiano que me deixou a 180 graus de distância de casa, e que me assegurou que estava mesmo na metade de trás do nosso redondo planeta.

Amanhã é dia de partir. É hora de abraçar de novo o meu destino, de viver essa inegável condição de ser Português e fazer-me ao mar, de novo ao sabor do vento como faziam esses Portugueses de antigamente enquanto espalhavam o nosso nome pelo mundo. Amanhã é dia de partir, de começar nova etapa dessa grande travessia que me separa do lado de lá do Pacífico, e que aos poucos me deixará mais perto do continente Americano, assim queira Neptuno. O mundo faz-se redondo, aos poucos, e ainda que sem dar por isso, e ainda que sem pressa, começa agora a ser o tempo de voltar.

A bordo do S.V. Mewa, Lami Town-Suva, Fiji, 31 de Agosto de 2015

Dois anos depois - do outro lado do mundo

14 de Janeiro de 2013: na pacata cidade Algarvia de Loulé dá-se uma despdida, um até já, uma partida, o começo de uma jornada, um pequeno passo para homem e humanidade, o simples e insignificante começo de uma epopeia pessoal que nada trará de novo ao mundo, o recomeço do abraçar de um sonho, o de partir de casa para voltar pelo outro lado, testando sem dúvida ou razão se o mundo é mesmo redondo, procurando pelo meio averiguar se ainda se pode fazer tal viagem sem aviões sem se ser chamado de louco ou sem se ser magnata, procurando pelo caminho conhecer cada quilómetro, cada cultura, cada instante, cada diferença, cada dúvida, cada certeza que nasce na paralela viagem interior que certamente se fará, procurando ir sem pressa para num qualquer dia chegar, caminhando sem razão, apenas porque a vida assim o deseja.

14 de Janeiro de 2015: na pacata cidade Papua de Aitape acorda-se para mais um dia, dois anos volvidos, quase 40,000 quilómetros e 22 países depois, muitas estradas percorridas, muitas ruas calcorreadas, muitas ondas do mar navegadas, muitas mais por navegar no Pacífico diante de mim e no Atlântico que um dia virá.

Acorda-se como noutro qualquer dia, com o sono que perdura, com o duche frio que acorda, com o café que me dá vida, com um olhar ao mundo lá fora, tão diferente, tão novo, tão estranho, tão meu ainda assim, nesta Papua Nova Guiné aonde acabo de chegar, este quase antípoda geográfico de casa, antípoda e meio do meu mundo, em tudo diferente de mim, duro, difícil, de certa forma violento, de certa forma tão mais humano que o meu mundo, nos sorrisos que se trocam, no hábito perdido a oeste de tão só dizer olá a quem passa, de dar as boas vindas, de dar a mão por instantes ainda que o nome trocado se esqueça pouco depois.

Vagueio, como quem vejo, num passeio pela praia de mar violento, cujas ondas abissais me trouxeram há dois dias, num breve instante passado no mercado onde compro o que comer, enquanto olhos curiosos analisam cada passo que dou, num misto de espanto e desdém, numa curiosidade de aldeia que assenta bem a esta cidade, a este país talvez, que me assenta bem a mim, já que dócil e acolhedora e afável num dia em que celebro 2 anos de estrada, de longe de casa, de companhia de mim mesmo, de caminhos vencidos, de saudades por vencer, e que celebro num febril deambular pela antítese do meu mundo, encontrando conforto no mar que sempre me acompanha, mas também nas gigantescas árvores da praça onde a sombra corta o calor, onde um sem fim de gente descansa e conversa, onde eu também me sento e paro e pergunto sem querer 'o que faço eu aqui?', para em seguida me responder sem afogo 'onde mais iria estar?'.

Dois anos de viagem, 24 meses de caminho, 730 dias à volta do mundo para chegar tão só a meio, e ainda que cansado olho-me ao espelho tão só para confirmar a certeza desse brilho nos olhos de menino, que hoje como sempre só pensam no tanto que ainda há por percorrer.

Aitape, Papua Nova Guiné, 14 de Janeiro de 2015












Para lá daquela linha – um primeiro passo no Pacífico

Foi na companhia de amigos que até ela cheguei. A linha, indiferente, esperava por mim com a mesma desfaçatez com que espera qualquer um, habituada, ignorando ou nem querendo saber quanto para mim significava cruzá-la, vencê-la, passar para o seu outro lado, o de lá, o desse novo país que dá início a uma nova etapa na minha viagem, na minha vida, no meu mundo. Sem saber a linha separava-me mais que da Papua Nova Guiné, separando-me também, ainda que simbolicamente, do começo da travessia do oceano Pacífico, o novo e grande desafio da minha viagem.

Até me aproximar da linha, no entanto, dois anos passaram, os que me trouxeram por terra e mar desde o sul de Portugal, desde a minha Loulé natal até esta fronteira. No longo caminho atravessei fugazmente a Europa, abracei a chegada ao oriente na Turquia, venci as fronteiras da desconfiança no Irão, arrisquei a travessia da intensa e acolhedora surpresa que é o incompreendido Paquistão, redescobri o caminho para a Índia, terra de uma antiga paixão que cresceu mais um pouco, encontrando mais adiante no Nepal a minha casa nas montanhas, por onde andei perdido ao longo de cinco meses com olhos e pés assentes no topo do mundo.

Assim passou o primeiro ano na estrada, que terminou de forma épica com um breve regresso à Índia em caminho à primeira travessia marítima desta viagem, feita em ferry entre Calcutá e as ilhas Andaman, e depois entre estas e a Tailândia ao sabor das ondas e do vento na boleia de um pequeno catamarã.

Foi numa Tailândia em alvoroço político que começou o meu segundo ano de viagem, começando também por este país uma breve volta ao carrossel do sudoeste asiático, continuada pelo Camboja, perdido entre a imensa beleza cultural e o horror extremo da recordação do regime de Pol Pot, pelo exótico e deslumbrante Vietname, que me deixou com uma imensa vontade de voltar, e pelo preguiçoso Laos, onde perdi a noção do tempo durante semanas, completando o carrossel no regresso à Tailândia, desta vez cheia de sorrisos e água pelos ares na comemoração do seu novo ano, o Songkran.

Finda a volta segui para sul, atravessando brevemente Malásia e Singapura numa espécie de regresso ao ocidente feito de olhos em bico. Por semanas deixei-me envolver na sua mistura intensa de modernidade, culturas ancestrais e sabores extremos, à qual não é estranho Portugal, presente em especial nesse antigo pólo central do nosso império oriental de 1500 que foi Malaca, onde ainda hoje língua e cultura se mantêm vivas no orgulho luso dos descendentes de marinheiros Portugueses de outros tempos.

De Singapura atravessei de novo o mar, levando o resto do ano de ilha em ilha enquanto percorri a Indonésia de um extremo ao outro, indo ainda pelo meio de encontro a esse povo corajoso e lutador, o povo irmão da antiga colónia de Timor Leste, que hoje se faz nação nova. Por lá pude matar as saudades de casa no bacalhau, no pastel de nata, na minha língua, e também ganhar nova coragem ao viver na pele a força incrível deste povo sofrido, cuja luta pela independência acompanhei na minha adolescência e juventude, e cujo testemunho vivo me lembrou que resistir é mesmo vencer. Mas se em Timor Leste reencontrei de certa forma a minha casa, na Indonésia encontrei uma casa nova, demorando-me no total seis meses entre antes e depois de Timor Leste, dedicados a conhecer a sua imensa diversidade natural e cultural.

Já nos últimos dias do segundo ano de viagem cheguei a um novo continente, a Oceânia, que toquei pela primeira vez na metade oeste da ilha da Papua, região incorporada na Indonésia nos anos 60 e onde hoje muitos ainda lutam e sonham com a promessa de independência, adiada pela invasão indonésia que perpetua até hoje o período colonial nesta metade da ilha. Incapaz, cansado, nostálgico de casa, alheei-me de tudo isto, imergi-me durante o Natal na magia do fundo do mar das ilhas de Raja Ampat, entrando depois nos primeiros dias do novo ano nas águas do Pacífico, que naveguei ao longo da costa norte da ilha de Papua e a caminho da fronteira da Papua Nova Guiné.

Foi na companhia de amigos que até ela cheguei. A linha, indiferente, deixou-me passar, enquanto atirei um último adeus ao segundo ano de viagem, personificado em Jose, Queensa e demais família, amigos do oeste da Papua conhecidos exactamente enquanto navegava à entrada do Pacífico, e que fizeram questão de me trazer até ela, à linha, local de despedida, início de nova etapa na minha viagem.

Vencida a linha olhei em frente, fiz-me ao caminho, mergulhando pouco a pouco na Papua Nova Guiné, no seu verde escuro, vivo, intenso, nas suas pequenas aldeias, no suave ondular das curvas da estrada, no contorno da sua costa quase virgem, na sua calma intocada que contrasta vivamente com o super-populado e híper-construido lado Indonésio da ilha. Gostei imediatamente daqui, sem saber bem porquê, talvez apenas por me sentir entrar num novo mundo, em tudo tão diferente do meu.

Cerca de uma hora depois da fronteira cheguei à primeira cidade, Vanimo, capital da região de Sandaun, ainda assim não mais que uma espécie de vila dispersa entre duas praias e em redor de um aeródromo, populada por pequenas casas de madeira e zinco dispersas entre o inevitável verde deste país tropical. Cheguei com intenção de passar um par de dias, mas não me demorei mais que um par de horas, as suficientes para num acaso encontrar transporte para este, e de caminho saborear a minha primeira refeição no país, um tradicional ‘aguir’, prato simples de frango, banana, inhame e verduras cozinhado ao vapor em folhas de bananeira.

Foi assim que acabado de chegar ao país dei por mim no meio do mar, navegando ao longo da costa entre ondas desordenadas e a bordo de um pequeno barco de pesca dos seus 4 metros, espécie de montanha russa aquatica que o experiente capitão fazia agilmente fugir por entre enormes vagas que nos faziam minúsculos.

Confesso que senti medo, afinal nunca tinha estado no meio de um mar tão grande em barco tão pequeno, arriscando nas mãos de quem desconhecia as próximas horas, navegando a minha vida ao longo da ténue linha que separa o mar das suas ondas.

Confesso que me senti corajoso, sentindo-me estranhamente à vontade neste mar, em casa, feliz, rodeado de gente que dia após dia se faz muito mais corajosa que eu, que me acolheu como família, primeiro num sorriso de quem via o medo nos meus olhos, depois numa conversa alucinante sobre o país, a sua vida, a minha, partilhando horas de desassossego que na companhia das suas palavras se fizeram breves.

Confesso que me senti feliz, quando após quatro horas finalmente chegamos, quando as ondas se fizeram mar calmo, quando o mar se fez chão firme na cidade de Aitape, quando o incerto se fez casa, quando o dia intenso de viagem se fez cama e a emoção se fez sono num merecido descanso de viajante exausto.

Foi na companhia de amigos que até ela cheguei, e uma vez vencida a fronteira foi assim vivi o meu primeiro dia na Papua Nova Guiné, intenso, emocionante, assustador, alucinante, perigoso, agradavelmente desconfortável, rodeado de imensa beleza, acima de tudo passado na companhia de encantadores estranhos que se fizeram amigos, ainda que apenas por breves instantes, dando as boas vindas ao meu primeiro dia no Pacífico, excitante prelúdio dos muitos que espero viver enquanto atravessar esse mar imenso, por rota e destinos incertos, ao sabor do acaso mas também da imensa vontade de seguir viagem, por terra e mar, sempre sem pressa de chegar.

Aitape, Papua Nova Guiné, Janeiro de 2015






Istambul

Istambul. A chegada de noite, a estação que não fala inglês, o transporte que leva a não sei onde e me deixa em lado nenhum, o alguém que aponta o caminho, o eléctrico que leva a bom porto, a chegada à nova casa, a saída à rua em seguida.

Istambul. A primeira visão de postal na noite iluminada de cores, o kebab naquele restaurante que só serve dois pratos, uma primeira Baklava com chá, um primeiro olhar sobre a Ásia adormecida antes do sono chegar.

Istambul. A manhã que desponta no Bósforo, a calçada que desço a correr, um primeiro café turco, a calçada que subo devagar, o encanto da Hagia Sophia, a mesquita azul que espreita em frente, a primeira incursão no bazar, a rua que desço até à água, a sandes de peixe fumegante, o tempo a passar sobre a ponte, o perder-me de novo na multidão.

Istambul. O bazar infinito onde entro de novo, as ruas cobertas do sol, a loja que vende tapetes, a que vende especiarias, as ruas cobertas de céu, a loja que vende malas, ‘a loja que vende AK47’s ao lado da que vende verduras?’, a imensa loja infinita que vende de tudo, dia e noite sem parar.

Istambul. O barco que ondula no Bósforo, a visão das suas margens, as pessoas a correr por elas, as pontes por cima de mim, as casas penduradas nos montes, o céu azul que nos cobre, o regresso ao cais de partida, o sol intenso que cai por entre as mesquitas, laranja, ao longe.

Istambul. O imã que chama por mim, os sapatos que tiro dos pés, a alcatifa suave do chão, as pessoas prostradas nela, o lugar onde me sento, o momento em que o tempo pára enquanto os outros rezam e eu me deixo existir ao seu lado, em silêncio.

Istambul. O regresso ao ocidente, a avenida que subo devagar, os muitos que sobem comigo indiferentes, a avenida que desço sem pressa, a torre que vejo ao longe, a cidade que vejo de cima dela, o ocidente entrelaçado no oriente, as ruas aonde volto para de novo me perder, o bazar iluminado onde entro uma última vez, a noite que passa em festa com músicas que desconheço, a semana que passou a correr, num instante, sem pensar.

Istambul. A calçada que desço de mochila, o ferry onde entro por fim, o pé que deixa a Europa, dez minutos sobre as águas, o pé que chega à Ásia, o olhar de despedida que lanço ao ocidente até ao dia de voltar a casa.

Istambul. O oriente por fim, o passeio frente ao mar, as pessoas a sorrir, os pescadores nas rochas, as crianças a correr, o momento em que me sento e contemplo o lado de lá como se daqui fizesse parte, o momento em que o banho turco me limpa e me faz sentir definitivamente parte daqui.

Istambul. A hora de partir que chega, um último café em corrida, um olhar de até já, a ida desta cidade na imensa saudade de voltar.

Istambul.


Istambul, Turquia, Fevereiro de 2013


















Um ano depois, ou, percorrendo a metáfora de uma revolução

Faz hoje um ano que parti. Saí de casa, pé ante pé, num vou ali já volto, num até já que durou até hoje, num até logo que não acabará enquanto não me cansar de sonhar com os pés no caminho, que durará até um dia voltar a casa pelo outro lado, sem pressas, se deuses e sorte quiserem.

Volveu um ano de viagem, que me trouxe desde Portugal por terra e mar, e hoje dou por mim aqui, na Tailândia, na sua capital Bangkok, cidade em constante alvoroço mas que hoje se revoluciona a sério, com ruas cheias de gente em protesto por um outro futuro, por algo melhor, talvez, por algo que não posso entender na totalidade mas que levou milhares à rua em protesto contra a corrupção do poder, em luta para recomeçar o seu país.

Saio à rua, a medo, um pé depois do outro, afinal talvez nem devesse estar aqui, mas fiquei, ‘quantas vezes terei o privilégio de testemunhar uma revolução ao vivo?’, pensei enquanto decidia não mudar de planos, ainda envolto na incerteza de se ficar não seria uma grande estupidez. Mas fiquei, e saí, um pé depois do outro, ainda a medo, percorrendo uma que sabia ser das principais artérias do protesto.

A tensão que pairava no ar sentia-se com os dedos, ou sentia-a eu com o coração em constante palpitação enquanto fazia caminho até ao café habitual dos últimos dias. No entanto a tensão foi-se esbatendo aos poucos, à medida que me passeava por esta revolução peculiar em que os revolucionários passavam por mim cobertos das cores do seu país, em pinturas e toda a espécie de bugigangas, alegres, quase alheios ao protesto, numa leveza que contrastava com tudo o que esperava, habituado que estou a ver imagens de revoluções em que caras encarniçadas e de veias pulsantes bradam o seu desagrado de forma violenta.

Aqui não, aqui a revolução parece ser diferente, quase uma festa, talvez por ser uma revolução não de militares ou políticos mas na sua larga maioria de pessoas normais que se cansaram de quem as desgoverna e querem apenas fazer-se ouvir. Tem algo de chique esta revolução, impressão a que não é alheio o facto do primeiro veículo que vi em protesto ter sido um descapotável de luxo, ou o facto de toda a gente parecer mais preocupada em tirar fotos uns dos outros e a si mesmos do que em gritar mais alto, e faz sentido que seja assim, afinal de contas não deixa de ser uma revolução em que são acima de tudo as classes mais altas quem se quer fazer ouvir nas ruas.

Pouco a pouco o medo venceu-se completamente, cansado de ver a rua pela janela do café saí pelas ruas de câmara em punho, usando-a para gravar para mim este dia, o dia em que pela primeira vez me vi no meio de um protesto e me fiz parte dele, ainda que passageiro, ainda que totalmente alheio aos seus propósitos. Caminhei, coleccionei sorrisos, ouvi música nos vários concertos improvisados, deixei-me encher desta energia e alegria. Também senti apertos, também ouvi gritos de revolta que não pude entender, também senti cansaço e quis voltar e sair daqui quando a novidade se gastou e já não fazia sentido estar aqui sem um propósito maior. Por fim fui embora, voltei a casa. Com o dia passado na rua a pesar-me nas pernas deitei-me, dormi num instante.

Assim passou o meu 365º dia em viagem. E, ainda que alheio ao protesto, foi numa cidade envolta neste espírito que acordei para o primeiro dia do novo ano que começou, um dia tranquilo em que acima de tudo senti saudades de casa, e em que deixei correr o tempo até à hora de celebrar entre amigos e sabores desconhecidos este marco da minha viagem, da minha vida, coisas inseparáveis que são. Ainda alheio à confusão voltei para casa, mas sempre com os protestos a espreitar-me ao longe, em cada esquina.

Metáfora real, a cidade parece querer dizer-me que não me acomode, que lute, que grite por mim numa revolução constante, não me deixando abater pelo peso dos dias que passaram, dos quilólmetros que percorri, acima de tudo dos que estão por passar e percorrer à minha frente, longos que são ainda até que um dia possa matar as saudades de casa. Afinal o cansaço já pesa, não há fronteiras, não sou de lado nenhum, sou hoje desta Bangkok em revolução, amanhã da estrada que me levará daqui para fora, de mais um país, de mais um destino, no fundo de destino nenhum, apenas do meu, apenas de mim.

Vivo no fundo um romance escrito com o meu próprio suor, com o pó que sacudo da mochila, com as lágrimas nos olhos que se enchem de saudade, com os sorrisos que vejo à minha volta e que me enchem a boca de certezas, com letras e palavras que não entendo, com linhas que se enchem de curvas enquanto escrevo o romance que sou. Nem sempre é fácil, vivo afinal num romance feito com as dúvidas que me invadem, com a incerteza que é ser quem sou, com o chão que se move a cada instante como num terramoto constante que tantas vezes me desnorteia e me questiona. Nem tudo é tão difícil, vivo afinal uma história de amor, por mim e pelo mundo, por cada pessoa que cruzo, por cada cultura que sorvo sofregamente, por cada quilómetro que percorro pela simples paixão de percorrer, há já um ano, uma vida toda.

São 12 os meses que passam hoje por mim, num instante que celebro como quem celebra um aniversário, o meu afinal, desse eu mais autêntico e real que em revolução vou construindo a cada dia, e que já amanhã atiro de novo à estrada, acto contínuo de mim, instinto de ser quem sou e que sigo com a naturalidade e certeza de quem respira mais um dia, enchendo de ar os pulmões da vida que faço mais viva, mais minha a cada dia.


Bangkok, Tailândia, 14 de Janeiro de 2014







Entretanto...

A viagem começou, arrancou, seguiu caminho. Eu fui com ela, de corpo e alma, mas as palavras ficaram, foram ficando por essa estrada, esquecidas, perdidas no tempo, num momento, num instante. Quando dei por mim já tinha tanta estrada debaixo dos pés e as palavras teimavam em ficar escondidas, dentro de mim, ou dispersas por tantos lugares, mas nunca onde pertenciam, aqui, nesta sua casa, a casa das palavras viajadas com que vou dando mais sentido ao meu caminho. Num entretanto que se fez eterno, a viagem seguiu enquanto as palavras ficaram paradas, e agora quando as recomeço, quando lhes dou vida, finalmente, a sua cronologia perde-se, faz-se diversa, inconstante, pouco importante, ou talvez mais ainda, ainda assim impossível de seguir. Seguirei a viagem, até que um dia a estrada me leve de volta a casa, seguirei a sua escrita, até que nada mais tenha p’ra dizer, mas daqui em diante as palavras de ontem ir-se-ão confundir com as de hoje, numa viagem em constante solavanco que entrelaçará o que trilho com os pés com as memórias do caminho que fiz para poder chegar aqui. Será um solavanco constante, como o meu, que seguirei na esperança de que, ainda que de maneira difusa e potencialmente confusa, possam comigo seguir nesta viagem.

Hanoi, Vietnam, Março de 2014